CAY e seus 118 homens de ouro

Uma das agremiações fundadoras da Federação Paulista de Futebol, o Clube Atlético Ypiranga (CAY) foi um celeiro de craques. Revelou ou teve no elenco jogadores como Barbosa, Arthur Friendenreich, Rubens Minelli, Mário Travaglini, Valdemar Carabina, Homero, Belmiro, Dema e Liminha, entre outros, mas em 1958, após um empate por 3 x 3 com o Jabaquara, o Vovô da Colina Histórica dispensou todos os atletas e a comissão técnica.

A partida foi disputada em 14 de dezembro e o resultado provocou a queda do time para a segunda divisão do Campeonato Paulista. No dia seguinte, o Departamento de Futebol foi desativado. Foi um trauma para os torcedores, que aguardam há 60 anos o retorno do CAY ao futebol profissional. Querem ver de novo grandes esquadrões Ypiranguistas rivalizando com Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Santos e todas as grandes equipes do futebol brasileiro.

Oportunidades não têm faltado, segundo o presidente Lincoln Cimatti Thomé. Ele disse, durante a festa do aniversário de 113 anos do alvinegro da rua do Manifesto, que clubes de grande porte o tem procurado, como procuraram presidentes anteriores, com o propósito de fazer uma parceria. “Eles querem usar a camisa do Clube Atlético Ypiranga, que é muito forte, mas isso não nos interessa”, descarta Thomé. O dirigente entende que a manutenção de um time envolve cifras muito altas, o que inviabiliza a volta do CAY à pratica do futebol profissional.

Há também o aspecto legal, firmado nos estatutos da agremiação. Uma possível reativação do Departamento de Futebol profissional teria de ser aprovada duas vezes seguidas pelo Conselho Deliberativo com dois terços dos votos. “Não podemos dizer que dessa água não vamos beber, mas o futebol profissional é deficitário e o retorno do CAY é quase impossível”, argumenta o conselheiro vitalício e ex-presidente do Vovô da Colina Histórica, Roberto Nappi. Mas, enquanto fala, os olhos brilham, como se estivesse vendo o Ypiranga jogar no Pacaembu, Morumbi, na Arena Corinthians ou até mesmo no Maracanã, o palco mundial do futebol.

O CAY interrompeu em 1958 as atividades do futebol profissional, mas até o início da década de 1970 disputou o Campeonato Paulista nas categorias infantil e juvenil. Os atletas eram federados e muitos acabaram se transferindo para clubes de vários estados. Atualmente, a agremiação mantém a escolinha de futebol para atletas de seis a 15 anos e participa de torneios promovidos pela Associação Paulista Interclubes de Futebol Menor, nas categorias sub-11, sub-13 e sub-15. Há ainda competições realizadas no campo do clube para sócios, divididas em 30+, 39+, 47+, 60 e 65+.

Clube oferece várias atividades

Futebol profissional à parte, o CAY oferece aos associados um cardápio variado de atividades. Tem academia, basquete, bocha, futebol, futsal, futvôlei, ginástica, judô, karatê, natação, hidroginástica, patinação artística, sinuca, squach, tênis, vôlei, yoga, ballet, dança, violão, biblioteca, espaço criança, espaço mulher, espaço teen e também promove festas variadas, bailes de Carnaval, Festas Juninas e sessões de cinema e teatro. Se não bastasse, realiza ações assistenciais, como, por exemplo, a doação de agasalhos e cobertores, nos dias mais frios do ano, a pessoas em estado de vulnerabilidade e risco social. Promove chás beneficentes e teatro infantil e adulto.

Modernização, palavra de ordem

Um dos pilares das recentes administrações tem sido a modernização da sede, na rua do Manifesto, 475, para atender às necessidades dos sócios. Melhorias são feitas constantemente, dando ao CAY uma estrutura superior à de muitas agremiações brasileiras. A profissionalização e a valorização do quadro de funcionários também são marcas do Vovô da Colina Histórica. Mas tudo surgiu com o futebol, que, junto com o fato de estar no berço da Independência do Brasil, fez do CAY uma marca respeitada, nacional e internacionalmente.

O CAY nasceu do desejo de jogar bola dos diretores e funcionários da Casas Lebre, uma loja de roupas na rua Direita, centro da cidade. Eles se reuniram no dia 10 de julho de 1906 com o propósito de formar um time. O encontro ocorreu na casa do presidente da empresa, Feliciano de Mello Filho, e resultou na fundação da Sociedade Esportiva Recreativa Ypiranga. As partidas eram realizadas na Várzea do Glicério e, por medida de segurança, as traves eram retiradas após o apito final. Não demorou para a agremiação se filiar à Liga Paulista de Futebol, levando os jogos para um campo ao lado do Parque Antártica.

Os anos passaram, a Sociedade Esportiva Recreativa Ypiranga cresceu, acumulou partidas invictas e, em 1917, lançou o lateral esquerdo Caetano de Domênico, que mais tarde viria a ser treinador da equipe. Ele criou a “cerradinha”, antecessora da retranca. Outra estreia aconteceu em 1919: Ângelo Antônio Milanesi, que posteriormente se tornou presidente do clube. O mandato foi de 1947 a 1951, uma fase difícil do CAY. Um dos ídolos do clube, Arthur Friendenreich excursionou com o Clube Atlético Paulistano, em 1924, e foi o artilheiro nos amistosos disputados na Europa.

CAY também revelou nomes na natação

A denominação Clube Atlético Ypiranga foi criada em 1932 por iniciativa de Frederico Jafet. Ele efetuou a fusão do Independência, clube que presidia, com o Siléx e adotou o nome CAY. Carlos Paetá, José Minelli (pai de Rubens Minelli, ponta esquerda arisco e depois treinador vitorioso), Natal Saliba e Gilberto Viviane Ferraiolo implantaram o futebol amador e, ao mesmo tempo, tinham a missão de garimpar talentos na região. Foi assim que surgiram no clube Rubens Minelli e os zagueiros Mário Travaglini, Waldemar Carabina entre outros.

O profissionalismo já era uma realidade no futebol paulista, em 1940, com Carlos Jafet na presidência, o CAY alcançou o 3º lugar no estadual. Peixe (pai de Peixinho, autor do primeiro gol no Morumbi) foi o artilheiro da competição. Os mais antigos dizem que na época já existia o “apito amigo”, que naquele ano teria tirado o título do Vovô da Colina Histórica. Foi também em 1940 que o alvinegro do Ipiranga se transferiu para o Sacomã, montando a estrutura no local em que hoje funcionam o Terminal Rodoviário e o Metrô Sacomã. A época, a Light mantinha a sede recreativa no bairro, em área pertencente à família Samarone, e o espaço foi alugado ao CAY.

Começava assim o desenvolvimento e crescimento da agremiação ipiranguista. Havia um lago no terreno, além do conhecido Castelinho, e o clube iniciou a prática da natação, revelando atletas como os irmãos Clemente e Elizabeth Hunteloucher. Mas o carro-chefe era o futebol e, em 1942, 1943 e 1944, o CAY manteve um esquadrão formado por Barbosa, Lulu, Sapólio, Laxixa, Ortega, Alcebíades, Duzentos, Canhoto, Plácido, Magri e Rodrigues.

Perseverança e união superaram as dificuldades

Entre 1948 e 1950, o CAY montou o time considerado por muitos como o melhor da história do clube. A equipe tinha Osvaldo, Giancoli, Homero, Belmiro, Reinaldo, Dema, Liminha, Rubens, Silas, Bibi e Walter. A situação financeira era precária e todos os atletas bateram asas para os rivais. A nau ficou meio que à deriva, mas aos poucos retomou o curso.

Os recursos eram exíguos, mas até 1953 o CAY fez várias tentativas na esperança de adquirir o terreno no Sacomã. A gleba foi encampada pelo município e o então prefeito, Jânio Quadros, teria se comprometido a pensar com carinho na proposta do CAY, mas na hora H recuou. Argumentou que a missão de um governante era construir escolas, não ajudar clubes de futebol. O ex-atleta e ex-presidente Ângelo AntonioMilanesi e Jânio se encontraram na sala da diretoria do CAY, o cartola disse poucas e boas ao alcaide e, não satisfeito, jogou-lhe um tinteiro no rosto.

A decadência parecia incontornável e, ainda em 1953, parte da história do CAY foi levada para a chácara da família Fongaro, onde hoje é o Jardim Fongaro. A luz no final do túnel surgiu com Sérgio Lazaresch. Ele cedeu ao Vovô da Colina uma sala no CDR São José e, pouco depois, foram alugadas duas salas em cima do recém-inaugurado Cine Anchieta, na rua Silva Bueno, 2.404. As despesas eram bancadas por 118 abnegados sócios, que se tornaram lendas no CAY.

Mário Teles sucedeu Jerônimo Maury na presidência do CAY e, junto com os 118 homens de ouro, começa a recuperar as finanças da agremiação. A família Jafet também foi importante na compra da sede própria do CAY, em 1956, na rua Xavier Curado, sem ônus ao futebol. Se não bastasse, os Jafet negociaram o terreno que possuíam na rua do Manifesto, em 1960, quando começou a ser construído o que é atualmente um dos maiores clubes da Capital.

Fantasma da derrota perseguiu goleiro

O vexame da Copa de 1950, conhecido como Maracanazo, deixou traumas no goleiro da seleção brasileira, Barbosa, que havia sido ídolo no CAY. Ele foi responsabilizado pela derrota do Brasil por 2 x 1 para o Uruguai, na partida final. Retornou ao Vasco da Gama, mas já não escondia a decepção com o futebol. Estar em campo era um tormento para o goleiro, que defendeu até 1961 o Gigante da Colina, com um intervalo de quatro anos, período em que foi emprestado a outros clubes. Encerrou a carreira no ano seguinte, no Campo Grande, do Rio de Janeiro.

Barbosa estréia pegando três pênaltis

Moacir Barbosa nasceu em Campinas, interior de São Paulo, em 27 de março de 1921 e, antes de completar 20 anos, mudou-se para a Capital. Era goleiro do laboratório farmacêutico LPB, onde trabalhava. Observado por um olheiro do CAY foi convidado a fazer testes no “Vovô”. A estreia foi em um amistoso contra o Taubaté Esporte Clube, do Vale do Paraíba, e Barbosa defendeu três pênaltis. Foi contratado pelo alvinegro, então presidido por Carlos Jafet. Jogou de 1942 a 1944 no CAY e, no ano seguinte, foi para o Vasco da Gama.

Goleiro arrojado e acrobático, Barbosa foi um papa-títulos. Foi hexacampeão carioca em 1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958, e também ajudou o Vasco a conquistar, em 1948, o Campeonato Sul-Americano de Clubes, precursor da Copa Libertadores da América. Com a seleção brasileira, em 1949, foi campeão do Campeonato Sul-Americano de Seleções. Ele ainda teve uma experiência como técnico, trabalhou no Maracanã, contratado pela Suderj (Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro) e, no retorno à São Paulo, já em dificuldades financeiras, foi acolhido pelo CAY. Foram realizados um show com Aguinaldo Timóteo e um jogo com atletas veteranos, com rendas revertidas para Barbosa.

Cronistas o culpam pela derrota

O sofrimento fez com que Barbosa perdesse tudo o que havia conquistado e, até o último dia de vida, 7 de abril de 2000, dividiu com a mulher e uma cunhada um pequeno apartamento na Praia Grande litoral sul de São Paulo. As causas da morte declaradas pelo Hospital Ação Médica Comunitária, da Vila Alice, na Praia Grande, onde foi atestado o óbito, foram insuficiência respiratória aguda, acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência hepática. Mas os amigos afirmam que ele morreu de tristeza pela acusação dos cronistas esportivos da época de ter falhado no segundo gol uruguaio, do ponta direita Alcides Giggia.

Quem acompanhou de perto o drama de Barbosa foi Roberto Nappi, conselheiro vitalício e ex-presidente do Clube Atlético Ypiranga (CAY). “Eu o levei para o litoral e o ajudei financeiramente, porque um profissional como Barbosa, que foi um dos maiores goleiros do país, não merecia ser abandonado”, diz Nappi.