A beleza de teus cachos
Conheci o escritor chileno Pablo Neruda através dos cabelos de uma mulher. Foi numa tarde ensolarada, de um dia diferente dos outros, que a visita em “La Chascona” despertou algo em meu coração. Observei cada canto da casa que o poeta construiu para sua última companheira. Em Santiago, Neruda e Matilde nasceram e morreram muitas vezes no lar onde decidiram se amar por completo.
“La Chascona”, que em tradução livre significa “A descabelada”, era também o apelido de Matilde. Com madeixas apaixonantes, seu cabelo foi inspiração para inúmeros poemas de Neruda. Sem perceber, exatamente 60 anos depois, me pego apaixonada por fios de cabelos que se enrolam dia e noite sem pedir licença. Sem saber como, os cachos do ser amado crescem. Suave como a água, meus dedos percorrem os infinitos caminhos que eles formam e descubro ali um oceano de calmarias e tempestades. Vejo ele vindo todo descabelado, a favor do vento, contra o vento, em minha direção, sua imagem invade meus olhos.
Mas mutante como a vida, numa tarde qualquer, de um dia diferente dos outros em que estavas longes de mim, abandonastes os cachos. Sem poder me despedir, fechei os olhos e imaginei diante da lua cheia seus cabelos florescendo mais fortes e enrolados. Mais uma vez, sem saber como, me sinto como Neruda e uso seu soneto XIV, publicado em “Cem Sonetos de Amor”, para expressar-me.
“ME FALTA tempo para celebrar teus cabelos.
Um por um devo contá-los e louvá-los:
outros amantes querem viver com certos olhos,
eu só quero ser penteador de teus cabelos.
Na Itália te batizaram Medusa
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira.
Eu te chamo brejeira minha e emaranhada:
meu coração conhece as portas de teu pêlo.
Quando tu te extraviares em teus próprios cabelos,
não me esqueças, lembra-te que te amo,
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira
pelo mundo sombrio de todos os caminhos
que só tem sombra, transitórias dores,
até que o sol suba à torre de teu pêlo.”